Visto o meu colega Diogo estar com várias tarefas entre mãos, assumo a responsabilidade - e que responsabilidade! – de explicar a última curta do mês passado. Recordemos então o que Espinosa diz na Ética (Demonstrada Segundo o Método Geométrico):
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«A substância não pode ser produzida por outra coisa; por conseguinte, será causa de si mesma, isto é, a sua essência envolve necessariamente a existência, ou por outras palavras, o existir pertence à sua natureza. Q.E.D.» (Ética, Proposição VII)
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Antes ainda de prosseguir para a explicação , deixo duas notas:
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Primeiro, Espinosa queria usar - e usou - o método de “exposição dedutiva” na sua
Ética. Este método era, e ainda é, bastante usado nas exposições e provas da matemática e da geometria. A ideia é assumir um reduzido número de axiomas e/ou lemas de base e, partindo deles, deduzir lógica e validamente um conjunto de proposições verdadeiras, as respectivas demonstrações dessas proposições e os corolários a que podemos chegar no final do processo dedutivo. Este método foi considerado durante muito tempo um processo quase infalível no sentido de “demonstrar” estados de coisas no mundo, pois fundava-se na validade lógica e apoiava-se em verdades apriorísticas (extra experiência) das matemáticas. Espinosa usou este sistema precisamente para demonstrar e provar as suas teses sobre Deus e sobre a ética dos homens. A ideia era extrair um conjunto de verdades necessárias sobre a Existência (e.g., Deus existe e é o todo) de um conjunto de verdades lógicas - ou de axiomas (e.g., só pode haver uma Substância).
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Segundo, Q.E.D abrevia a expressão do Latim
Quod Erat Demonstrandum, que significa algo como “Está assim demonstrado que…” ou “Fica assim provado que…”. A expressão manteve-se dos tempos em que as obras filosóficas europeias eram integralmente escritas em Latim, independentemente da nacionalidade dos autores. A expressão foi, e ainda é, usada para finalizar um argumento válido, com premissas verdadeiras e sólidas, das quais se segue uma conclusão também verdadeira – e sólida.
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Por fim, a explicitação, ou talvez não, do significado da Curta. Comecemos pelos princípios. Devemos o conceito de Substância a Aristóteles. Substância era para ele um dos géneros do Ser, algo do qual nada pode ser predicado (e outras coisas complicadas de explicar e perceber). Este conceito de Substância atravessou os séculos, sofrendo poucas alterações, até chegar a Espinosa (e outros antes dele) e este a identificar com Deus. Em termos simples, a substância é aquilo que está na base - ou é a base, o sustentáculo - de todas as outras coisas, físicas ou não-físicas (não confundir Substância com Matéria). Foi assim, julgo, que Espinosa entendeu e usou o conceito. Para ele, a propriedade fundamental (essencial) da Substância é a Existência. Para se perceber isto melhor, admita-se por uns instantes a hipótese contrária, i.e., que a Substância não tem a propriedade de Existir. Se assim fosse, a Substância não seria Substância, pois para o ser, i.e., para ter as propriedades da substância, não pode não existir. Retomando agora a Curta, o que se disse acima implica que “a sua essência envolve necessariamente a existência”, quer dizer, é imperativo - é necessário, em qualquer circunstância, em todos os mundos possíveis - que a Substância possua a propriedade de existir, i.e., faz parte da sua essência existir. Esta é a razão por que, na perspectiva de Espinosa, Deus é a Substância; e, conversamente, a Substância é Deus. É que, bem vistas as coisas, só Deus “cabe” no conceito de Substância - pois Ele é a Única Coisa cuja essência não podemos conceber sem a existência, quer dizer, não podemos conceber Deus como um não-existente (pois este é um conceito contraditório nos seu próprios termos). A substância (Deus) pode "ter", segundo Espinosa, infinitos Atributos: Extensão, Espírito, etc. Estes atributos podem, por sua vez, manifestar-se de infinitos Modos – e.g., um poema de Pessoa, um pôr-do-sol ou mesmo o sorriso de uma criança.
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Luís Rodrigues