Entrevista a Desidério Murcho, filósofo português
A ideia de que não há filósofos e cientistas portugueses de excelente categoria é falsa. O nosso país tem de facto pessoas competentes que contribuem decisivamente para o desenvolvimento da ciência e da filosofia. É o caso de Desidério Murcho, filósofo português que desenvolve o seu trabalho por terras de Sua Majestade. Desidério nasceu em 1965. É licenciado e mestre em Filosofia pela Universidade de Lisboa e membro fundador do Centro para o Ensino da Filosofia da Sociedade Portuguesa de Filosofia. Dirige a colecção Filosofia Aberta, na Gradiva, e traduziu vários livros de filosofia. Organizou com João Branquinho (outro filósofo português de renome) a Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos (Gradiva, 2001, Martins Fontes, no prelo), é co-autor de A Arte de Pensar (10.º e 11.° anos) (Didáctica Editora, 2003 e 2004) e autor de Essencialismo Naturalizado (Angelus Novus, 2002), A Natureza da Filosofia e o seu Ensino (Plátano, 2002), O Lugar da Lógica na Filosofia (Plátano, 2003) e Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade (Quasi, no prelo). É director executivo da revista Disputatio. É colunista do suplemento "Mil Folhas" do jornal Público. É formador de professores de filosofia do ensino secundário e prepara o seu doutoramento em Filosofia no King's College London, onde é bolseiro da FCT e tutor em Lógica Filosófica, Ética e Filosofia da Religião. Além disso é director da Crítica, Revista (online) de Filosofia e Ensino.
Cinefilosofia: Desidério, pensa que é possível encontrar boa filosofia em filmes? Se sim, dê-nos por favor alguns exemplos da sua preferência.
Desidério Murcho: Penso que não há boa filosofia no cinema; mas há por vezes ideias ou problemas filosóficos que estão de algum modo presentes no cinema. Por isso, o cinema pode ser usado como uma forma de apresentar a filosofia ao grande público, assim como nas escolas secundárias. No estrangeiro há vários livros que usam o cinema para apresentar a filosofia ao grande público, um pouco como o Cinefilosofia está agora a tentar fazer em Portugal, numa iniciativa ímpar. Recentemente, duas cenas de dois filmes foram para mim iluminantes. A primeira é do filme Matrix, e exploro-a num capítulo do meu livro Pensar Outra Vez: o traidor quer voltar para o mundo de fantasia da Matrix, mas pede a agente Smith para não se lembrar de nada. Ele quer ficar sem saber que vive num mundo de ilusão. A importância filosófica desta ideia é explorada no meu livro. Outra cena acontece no excelente Castaway, com Tom Hanks, e dá-nos um insight extraordinário sobre o papel desempenhado pela fé no desenvolvimento humano. O debate entre o que incorrectamente (mas não sei dizê-lo correctamente) se pode chamar em português "evidencialismo" e o não evidencialismo torna-se mais claro quando se compreende o que a personagem de Tom Hanks declara, depois de passar por uma situação de total desespero: a aleatoriedade do mundo trouxe-lhe uma vela que lhe permitiu fugir da ilha. O evidencialismo é uma posição fechada à aleatoriedade do mundo, e estar atento a ela pode representar a diferença entre a sobrevivência ou a morte. A fé, e a crença numa providência, pode ser uma forma cultural de responder a esta necessidade de estar atento às aleatoriedades do mundo.
Cinefilosofia: Sabemos que é defensor da clareza de exposição e da solidez na argumentação. Pensa que é possível conjugar estas exigências da ciência e da filosofia com a liberdade artística?
Desidério Murcho: Claro que sim. O que se passa é que, precisamente porque Portugal não é um produtor forte nem de artes nem de ciências, a visão popular que se tem de ambas é caricatural. A ideia caricatural é esta: a ciência consiste em fazer cálculos automáticos, destituídos de criatividade; a arte consiste na completa aleatoriedade, não exigindo qualquer preparação e domínio técnico. Isto é um disparate. Qualquer pintor ou músico sério sabe que são necessários anos de trabalho técnico para se alcançar bons resultados; e qualquer cientista sabe que sem criatividade e imaginação não conseguirá ser inovador. O problema é confundir-se o fazer ciência com a mera compreensão e repetição do conhecimento empacotado que se transmite à paulada nas universidades portuguesas, e que foi originalmente produzido no estrangeiro. A separação radical entre artes, ciências e filosofia é artificiosa e resulta de desconhecimento.